Cadeias globais de valor (CGV) e governança das relações

Errol Fernando Zepka Pereira Junior[1]

1. INTRODUÇÃO

O artigo de Gereffi et al. (2001) usa a estrutura da cadeia produtiva para examinar a estrutura e a dinâmica das indústrias globais e as perspectivas de desenvolvimento das nações e empresas onde essas cadeias operam.

Na edição de 2020 do World Development Report, o Banco Mundial avalia que atualmente cerca de 50% do comércio internacional se dá por meio das cadeias globais de valor (CGV), o que, segundo o Banco, traz maiores contribuições para o desenvolvimento dos países em comparação com outros fluxos de comércio. O Banco considera ainda que nos últimos anos as CGV impulsionaram o crescimento global, melhoraram a qualidade dos empregos ofertados e promoveram redução da pobreza (IEDI, 2020).

O texto de Gereffi et al. (2005) constrói uma estrutura teórica para ajudar a explicar os padrões de governança em cadeias de valor globais. Baseando-swe em três correntes da literatura – economia dos custos de transação, redes de produção e capacidade tecnológica e aprendizagem em nível de empresa – para identificar três variáveis ​​que desempenham um grande papel na determinação de como as cadeias de valor globais são governadas e mudam. Os autores definem: a complexidade das transações, a capacidade de codificar as transações e as capacidades na base de fornecimento. A teoria gera cinco tipos de governança da cadeia de valor global – hierarquia, cativa, relacional, modular e de mercado – que variam de altos e baixos níveis de coordenação explícita e assimetria de poder.

O estudo de Pietrobelli e Rabellotti (2011) aborda duas questões de pesquisa: como os mecanismos de aprendizagem operam em diferentes tipos de cadeias (ou seja, através da pressão para aprender ou através de suporte explícito e transferência deliberada de conhecimento)? E qual é o papel de suporte do SI nos processos de aprendizagem e inovação orientados a GVC.

O texto de Pinto et al. (2015) tem como objetivo apresentar as principais dimensões da abordagem das CGVs, tais como o upgrading, a governança, o direito de propriedade e as políticas governamentais, destacando os impactos das mudanças regulatórias da propriedade intelectual, associado ao Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs, do inglês Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), sobre as possibilidades e os limites de upgrading dos países em desen- volvimento na CGV.

O objetivo do trabalho de Gomes e Diegues (2020) foi analisar as mudanças na estrutura produtiva brasileira no período entre 2000 e 2014 em perspectiva comparada às estruturas produtivas dos Estados Unidos, Alemanha, Japão, China e México. Buscou-se analisar as mudanças estruturais ocorridas em países selecionados pelas óticas do VA e do emprego industrial, além de identificar seus impactos sobre a produtividade. Adicionalmente, o trabalho buscou contribuir para a literatura ao mensurar a evolução do grau de aproximação (catching up) ou de distanciamento (falling behind) da produtividade da indústria brasileira da fronteira internacional.

O objetivo central do artigo de Ferreira (2021) é analisar criticamente essas políticas, argumentando que, apesar dessas proposições serem acompanhadas de um discurso sobre a importância da formulação de políticas que levem em consideração a intensa conexão entre os países dentro de redes globais e regionais de produção, em grande parte, apenas reproduzem as proposições do “Consenso de Washington”. Além disso, ignoram explicitamente a importância de um planejamento de Estado, da coordenação das políticas de desenvolvimento produtivo e do papel de um Sistema Nacional de Inovação (SNI) robusto no processo de inserção

2. SÍNTESE ANALÍTICA

Gereffi etl al. (2001) fazem uma distinção entre as cadeias de produção dirigidas ao produtor e aquelas dirigidas ao comprador e levanta a hipótese de que o desenvolvimento requer uma ligação seletiva com diferentes tipos de “empresas líderes” nas indústrias globais. Depois, identificam os principais tipos de empresas líderes nas cadeias produtivas automotivas e de confecções, que exemplificam, respectivamente, as cadeias direcionadas ao produtor e as direcionadas ao comprador. Na sequência, ilustram como a abordagem da cadeia de suprimentos pode ser usada para estudar as múltiplas dimensões do crescimento industrial, que é uma nova forma de análise do desenvolvimento econômico na era da industrialização voltada para a exportação. Ênfase particular é dada à noção de crescimento industrial à medida que o papel exportador muda. E concluem, discutindo algumas das implicações teóricas para o desenvolvimento dessa abordagem de cadeias produtivas com bases históricas e organizacionais.

Conforme o relatório IEDI (2020), define-se CGV como a série de estágios de produção de um bem ou serviço à venda para consumidores, em que cada estágio adiciona valor e ao menos dois deles são realizados em pelo menos dois países diferentes. As cadeias dividem o processo de produção entre os países e as empresas de modo hiper especializado, ou seja, as empresas em diferentes países se especializam em uma tarefa específica e não produzem todo o produto. Para medir a participação nas CGV, o relatório adota a soma de dois indicadores das cadeias, para trás e para frente. O indicador para trás refere-se ao valor adicionado importado nas exportações brutas de um país. E o indicador para frente refere-se ao valor exportado por um país incorporado nas exportações de outros países, sobre o total exportado pelo primeiro.

O acesso aos mercados dos países desenvolvidos tornou-se cada vez mais dependente da participação em redes globais de produção lideradas por empresas sediadas em países desenvolvidos. Assim, a governança das cadeias de valor globais é essencial para compreender como as empresas nos países em desenvolvimento podem obter acesso aos mercados globais, o que os benefícios do acesso e os riscos de exclusão podem ser, e como a rede os ganhos com a participação em cadeias de valor globais podem ser aumentados. Enquanto a busca por caminhos de desenvolvimento sustentável na economia global é um objetivo inerentemente difícil e elusivo, a tarefa dos autores é muito facilitada por terem uma noção mais clara das várias maneiras pelas quais as cadeias de valor globais são governadas e os principais determinantes que moldam esses resultados (GEREFFI et al., 2005).

Pietrobelli e Rabellotti (2011) explicam que é bastante comum que as empresas terceirizem uma série de atividades que antes eram administradas internamente e mantenham internamente aquelas atividades nas quais têm competências essenciais. Uma característica comum nesta nova divisão global do trabalho é que as empresas líderes, muitas vezes de países desenvolvidos, se empenham na coordenação das atividades dos seus parceiros comerciais a montante e a jusante – diferentes tipos de governança. A literatura do GVC destaca o papel dos líderes da cadeia na transferência de conhecimento para seus fornecedores. Ao construir e aprofundar suas capacidades tecnológicas, os pequenos fornecedores nos países menos desenvolvidos podem explorar oportunidades para diferentes tipos de atualização: atualização de processos, que transforma entradas em saídas de forma mais eficiente, reorganizando o sistema de produção ou introduzindo tecnologia superior; atualização de produtos que está passando para linhas de produtos mais sofisticadas em termos de valores unitários aumentados; melhoria funcional que implique a aquisição de novas funções superiores na cadeia, como design ou marketing, ou o abandono das funções existentes de menor valor agregado para se concentrar em atividades de maior valor agregado; e melhoria entre cadeias, que consiste em aplicar a competência adquirida em uma função específica para entrar em uma nova cadeia.

Em linhas gerais, a configuração das CGVs implicou a intensificação do fluxo de comércio internacional de bens intermediários e do comércio intra e interfirma. Esses fatores, por sua vez, provocaram um aumento da competição internacional no nível das etapas produtivas e uma alteração significativa na divisão internacional do trabalho. Os países desenvolvidos especializaram-se em atividades de maior valor adicionado, como produção de peças e componentes, ou em atividades de criação do produto, tais como design e pesquisa e desenvolvimento (P&D); ao passo que os países em desenvolvimento passaram a atuar na produção de produtos manufaturados – tanto em atividades de processamento quanto na montagem de produto final –, em virtude das significativas economias de escala (PINTO et al. 2015).

Gomes e Diegues (2021) explicam que o processo de mudança tende a ser gradativo e path-dependent e está relacionado com os níveis de produtividade dos países, que definem as lacunas entre os líderes e os seguidores. Contudo, cada país segue uma trajetória de desenvolvimento diferente, que depende do modo como são construídas as competências tecnológicas internas. Dessa forma, alguns países avançam no sentido de recuperar o atraso (catching up) em comparação aos que estão na fronteira internacional por meio do aumento de produtividade, enquanto que outras economias seguem devagar ou retrocedem (falling behind).

As instituições multilaterais alegam que essas recomendações políticas surgem dado o contexto das CGV, entretanto, em grande parte apenas remontam as proposições do Consenso de Washington. A inserção nas cadeias é colocada como a principal (ou única) forma para que os países em desenvolvimento logrem se desenvolver, entretanto, essa ideologia e as propostas que emanam dela são muito limitadas e ignoram a dimensão sistêmica e nacional dos processos de inovação. Para Ferreira (2021), afirmar o que os países devem fazer para percorrer uma “trajetória de sucesso” está longe de ser trivial, mas é de suma importância que haja uma atuação presente do Estado – coordenando os diversos instrumentos que têm à disposição e prezando pela complementariedade deles -, e o reconhecimento a importância do fortalecimento do SNI.

3. POSICIONAMENTO

O crescimento industrial requer não apenas capital físico e humano, mas também capital social. As teorias econômicas da ascensão industrial indicam que, como o capital (tanto físico quanto humano) é mais abundante em relação à força de trabalho e dotações de outros países, as nações desenvolvem vantagens comparativas em indústrias de capital intensivo e habilidades. No entanto, a ascensão industrial não ocorre em um conjunto aleatório de setores com atividades intensivas em capital ou qualificação, mas sim em produtos que estão organizacionalmente relacionados por meio de empresas líderes nas cadeias de suprimentos. A ascensão industrial da cadeia produtiva do vestuário implica a construção e coordenação de redes com diferentes tipos de empresas líderes, que têm acesso a diferentes pools comuns de recursos de design.

4. CONCLUSÃO

A sustentação da competitividade na economia mundial envolve mudanças contínuas nas funções e habilidades econômicas. Novos exportadores estão constantemente entrando nas cadeias produtivas globais, o que leva as nações e empresas que já fazem parte da cadeia a cortar custos, melhorar ou sair do mercado. Há uma percepção de que é preciso ir mais rápido para ficar no mesmo lugar GEREFFI et al. (2001).

O relatório IEDI (2020) aponta que a automação reduziu a demanda por mão-de-obra e elevou a produtividade e a escala de produção, que por sua vez aumentou a demanda por importação de insumos, gerando outras oportunidades de emprego e renda. Essa é uma tendência geral nas CGV, segundo o Banco Mundial: os ganhos de produtividade e renda nas CGV são acompanhados de mais e melhores empregos, a despeito da produção se tornar mais capital-intensiva. Apesar do ciclo virtuoso de desenvolvimento, o engajamento em CGV tem gerado ganhos desiguais, piorando a distribuição de renda doméstica e internacional, entre cidades e regiões de cada território, entre grandes empresas e as menores, entre mão de obra qualificada e não qualificada, entre homens e mulheres no que se refere a oportunidades na carreira profissional, entre lucro e salários.

Embora haja uma infinidade de fatores que afetam a evolução da economia global, Gereffi et al. (2005) definem, com certeza, que as variáveis ​​internas ao modelo influenciam a forma e a governança das cadeias de valor globais de maneiras importantes, independentemente do contexto institucional em que estão situadas. atado. A estrutura de governança que os autores propõem leva a parte do caminho em direção a uma compreensão mais sistemática das cadeias de valor globais, mas ainda há muito a ser feito.

A proximidade organizacional ou relacional é mais importante do que a proximidade geográfica para apoiar a produção, identificação, apropriação e fluxo do conhecimento tácito. Assim, empresas multinacionais e GVC com bases de conhecimento e locais de inovação dispersos, mas cuidadosamente organizados, mesmo em países em desenvolvimento, e uso de “comunidades de prática”, poderia compensar a falta de proximidade geográfica (PIETROBELLI; RABELLOTTI, 2011)

No que se refere à questão da proteção da propriedade intelectual (patentes, marcas comerciais, direitos de autor, indicações geográficas etc.), Pinto et al. (2015) observaram que a teoria da CGV tem dado pouca importância a esse tema, que é de grande relevância para a compreensão do processo de upgrading, sobretudo o funcional e o de cadeia. Na análise da política de proteção da propriedade intelectual estabelecida pelo TRIPs, os autores constataram que tal acordo impôs padrões que asseguram exclusividade para a propriedade intelectual, dificultando, assim, o desenvolvimento de capacita – ções locais e da aplicação da engenharia reversa. Isso mostra que o TRIPs, ao não considerar os diferentes graus de desenvolvimento entre os países, provocou uma uniformização internacional do aumento da proteção de direitos de propriedade que limita as possibilidades de upgrading dos países em desenvolvimento.

Palma (2005, apud Gomes e Diegues 2021) levantam quatro hipóteses que tentam explicar a queda do emprego industrial em países industrializados, são elas: (i) a queda é uma “ilusão estatística” provocada pela realocação de mão de obra industrial para o setor de serviços, sendo esse serviço terceirizado pela indústria manufatureira; (ii) a redução do emprego pode estar relacionada a uma significativa redução na elasticidade renda da demanda por produtos manufaturados; (iii) “o declínio é consequência do rápido aumento de produtividade (pelo menos em alguns setores) na indústria trazido pela propagação do novo paradigma tecnológico de microeletrônicos (esse teria sido um caso da nova tecnologia tender a produzir ‘crescimento de desempregados’)”; e (iv) a queda é o resultado de uma nova divisão internacional do trabalho.

As políticas orientadas ao SNI destacam a relevância de eixos industriais e de inovação, entendendo a necessidade de promover políticas que fortaleçam as capacidades nacionais e o próprio SNI. Com o direcionamento dos recursos nacionais para o desenvolvimento de capacidade inovativa e produtiva, as multinacionais passam a alocar uma parcela maior do VA da produção dentro do país e, seguindo a mesma lógica, as empresas nacionais são capazes de produzir redes e capacidades locais que permitem buscar uma melhor inserção, ou ainda, em certo ponto, possibilita a essas empresas a construção de suas próprias cadeias. A partir dessa abordagem, confere-se uma maior importância a dimensão local da formulação de políticas e a inovação é entendida como um processo interativo e sistêmico (FERREIRA, 2021).

5. REFERÊNCIAS

GEREFFI, Gary et al. Las cadenas productivas como marco analítico para la globalización. Problemas del Desarrollo. Revista Latinoamericana de Economía, v. 32, n. 125, 2001.

IEDI. Cadeias Globais de Valor: Padrões, impactos e desafios, segundo o Banco Mundial. Carta IEDI, n. 980, 2020.

GEREFFI, Gary; HUMPHREY, John; STURGEON, Timothy. The governance of global value chains. Review of international political economy, v. 12, n. 1, p. 78-104, 2005.

PIETROBELLI, Carlo; RABELLOTTI, Roberta. Global value chains meet innovation systems: are there learning opportunities for developing countries?. World development, v. 39, n. 7, p. 1261-1269, 2011.

PINTO, Eduardo Costa; FIANI, Ronaldo; CORRÊA, Ludmila Macedo. Dimensões da abordagem da cadeia global de valor: upgrading, governança, políticas governamentais e propriedade intelectual. Texto para Discussão, 2015.

GOMES, Guilherme Nascimento; DIEGUES, Antônio Carlos. Cadeias globais de valor e desindustrialização: as transformações na estrutura produtiva brasileira em perspectiva comparada à indústria internacional. Revista de Economia, v. 42, n. 78, p. 387-418, 2021.

FERREIRA , K. Políticas Orientadas às Cadeias Globais de Valor: Uma abordagem crítica. V ENEI. FACE/UFMG, 2021.


[1] zepkaef@gmail.com

Leave a comment